Meu pai trabalhava em outra cidade e só era liberado para ver a família aos finais de semana e datas comemorativas. Resultados de uma implacável perseguição política promovida pela ditadura uruguaia. Isso fazia com que quase nunca estivesse conosco. Depois de um tempo, nos acostumamos a vê-lo fragmentadamente.
Em uma dessas datas ele não pôde chegar a tempo. Era Natal de 1982 e já passava de meia-noite. Minha mãe estava deitada fazendo dormir minha irmã mais nova e meu irmão - o caçula dos homens e terceiro entre os filhos - brincava comigo na sala, quando a campainha ressoou. Achamos estranho pelo horário e fomos juntos atender a porta.
Ao abrir nos deparamos com três meninos, entre 10 e 13 anos. Cabelos lisos e curtos, desalinhados, rostos cansados e trajes rasgados. Estavam descalços e estendendo a mão, o menor deles perguntou:
- Não tem um pedaço de pão velho pra dar?
Sei que a impressão foi a mesma para meu irmão que para mim. Os olhares foram quase lâminas entrando por nossos olhos. Corremos até o quarto e contamos a situação para nossa mãe, um querendo contar primeiro que o outro e com mais detalhes. Ela nos ouviu e calmamente disse:
- Peguem o frango que está no forno, coloquem em uma sacola, embrulhem com cuidado e sem pegar com as mãos. Entreguem a eles.
- TODO o frango?? - perguntou espantado meu irmão.
- Sim. - respondeu ela pacientemente.
- Mas,...está inteiro... - argumentou ele.
- Se fosse você e sua irmãzinha no lugar deles, a esta hora da noite, pedindo comida, você ia gostar que te dessem um pão velho e duro? - questionou.
- Não. - respondeu ele compreendendo a decisão.
- Então faça o que mandei. Não se dá à quem precisa algo que não te serve mais. Você dá o que está bom e útil pra você. - concluiu e virou para dormir.
Nós fomos à cozinha, abrimos o forno, retiramos o frango (um grande frango por sinal), colocamos numa sacola limpa e fomos até a porta. Quando abrimos, os meninos agradeceram e abriram a sacola para ver o que tinham recebido e, quão não foi seus susto ao dar de cara com um enorme frango assado, ainda morno.
Eles se olharam e sorriam com os olhos e bocas e entre risos e agradecimentos, sairam correndo. Acredito que voltando para casa. Meu irmão e eu ainda ficamos alguns segundos parados na porta, vendo a imagem se distanciar no silêncio da rua.
Quando entramos, não éramos mais os mesmos, muitas lições foram assimiladas naquela noite e uma delas foi que existem muitas formas de se vivenciar um Natal...aquela era, certamente, a mais bela e verdadeira delas.