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Meu Diário
23/10/2020 17h41
O olhar de um Natal

Meu pai trabalhava em outra cidade e só era liberado para ver a família aos finais de semana e datas comemorativas. Resultados de uma implacável perseguição política promovida pela ditadura uruguaia. Isso fazia com que quase nunca estivesse conosco. Depois de um tempo, nos acostumamos a vê-lo fragmentadamente.

Em uma dessas datas ele não pôde chegar a tempo. Era Natal de 1982 e já passava de meia-noite. Minha mãe estava deitada fazendo dormir minha irmã mais nova e meu irmão - o caçula dos homens e terceiro entre os filhos - brincava comigo na sala, quando a campainha ressoou. Achamos estranho pelo horário e fomos juntos atender a porta.

Ao abrir nos deparamos com três meninos, entre 10 e 13 anos. Cabelos lisos e curtos, desalinhados, rostos cansados e trajes rasgados. Estavam descalços e estendendo a mão, o menor deles perguntou:

- Não tem um pedaço de pão velho pra dar?

Sei que a impressão foi a mesma para meu irmão que para mim. Os olhares foram quase lâminas entrando por nossos olhos. Corremos até o quarto e contamos a situação para nossa mãe, um querendo contar primeiro que o outro e com mais detalhes. Ela nos ouviu e calmamente disse:

- Peguem o frango que está no forno, coloquem em uma sacola, embrulhem com cuidado e sem pegar com as mãos. Entreguem a eles.

- TODO o frango?? - perguntou espantado meu irmão.

- Sim. - respondeu ela pacientemente.

- Mas,...está inteiro... - argumentou ele.

- Se fosse você e sua irmãzinha no lugar deles, a esta hora da noite, pedindo comida, você ia gostar que te dessem um pão velho e duro? - questionou.

- Não. - respondeu ele compreendendo a decisão.

- Então faça o que mandei. Não se dá à quem precisa algo que não te serve mais. Você dá o que está bom e útil pra você. - concluiu e virou para dormir.

Nós fomos à cozinha, abrimos o forno, retiramos o frango (um grande frango por sinal), colocamos numa sacola limpa e fomos até a porta. Quando abrimos, os meninos agradeceram e abriram a sacola para ver o que tinham recebido e, quão não foi seus susto ao dar de cara com um enorme frango assado, ainda morno.

Eles se olharam e sorriam com os olhos e bocas e entre risos e agradecimentos, sairam correndo. Acredito que voltando para casa. Meu irmão e eu ainda ficamos alguns segundos parados na porta, vendo a imagem se distanciar no silêncio da rua.

Quando entramos, não éramos mais os mesmos, muitas lições foram assimiladas naquela noite e uma delas foi que existem muitas formas de se vivenciar um Natal...aquela era, certamente, a mais bela e verdadeira delas.

Publicado por Gaby Faval
em 23/10/2020 às 17h41
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